O Bairro de São João de Brito, que há alguns anos estava à vista de todos os que passavam na Segunda Circular, cresceu na década de 70. Foi auto-construído sobretudo por retornados, mas também muitos migrantes de outras zonas do País. A câmara, em pleno PREC, autorizou as construções; em troca, os moradores pagavam uma renda simbólica, pelo terreno ocupado. Era tudo lama, sobretudo barracas de madeira e chapas de zinco, não havia água, eletricidade ou rede de esgotos.
Entretanto, muitos moradores foram realojados, na zona oriental da cidade, e a maior parte do bairro foi abaixo. Mantêm-se algumas moradias, agora já com qualidade e todas as condições. Mas a precariedade habitacional está mesmo ali ao lado, na Quinta do Alto.
É só atravessar uma rua, que hoje já é de alcatrão e tem toponímia – Rua de Trás-os-Montes – para entrarmos na Quinta do Alto e… noutro mundo. O tempo parece voltar atrás. A maior barraca que ali havia, à entrada da Quinta do Alto, mas já em terrenos municipais, foi abaixo há mais de um mês. José Bettencourt viu a barraca ser demolido e ficou sem um teto. Agora, vive dos favores dos vizinhos, que lhe vão dando dormida e comida.
Em 2024, em visita ao bairro, ficámos a saber que ali morava um açoriano com a família. Era José Bettencourt, que partilhava a barraca com a irmã, o cunhado e a sobrinha. Não havia água canalizada, mas, no telhado da barraca, dava nas vistas uma antena parabólica.

Ao 24 Horas, a câmara municipal de Lisboa explica o que se passou por ali: “Na sequência da operação de Loteamento aprovada em julho de 2017, para o Bairro São João de Brito, foram identificados os lotes para demolição. Foram também identificadas as famílias residentes nos referidos lotes e, por deliberação da câmara, de outubro de 2018, foi aprovado o realojamento das que não tinham alternativa habitacional e que cumpriam os critérios definidos no Regulamento de Operações de Realojamento e Lei n.º 81/2014, de 19 de dezembro, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 32/2006, de 24 de agosto, que aprova o novo regime do arrendamento para a habitação.”
Na Quinta do Alto há mais barracas e alojamentos improvisados. Alguns ficaram fora dos realojamentos municipais. A caminhar pela Rua das Mimosas, o 24Horas deparou-se com uma casa abarracada. A construção é em tijolo, não tem revestimento exterior. Um olhar mais atento mostra uma pequena janela onde será a casa-de-banho: vê-se, do exterior, um frasco de champô.
Em baixo, os cães estão fechados noutra divisão, com uma janela gradeada para o quintal onde se amontoam restos de eletrodomésticos, cabos e mobília e está pousado um depósito de água. É lá que mora Carlos, um homem na casa dos 50, que vive da venda das sucatas. Não o encontrámos.
Sabemos que no ano passado a “casa” pertencia a outro: um rapaz que estava em condição de sem-abrigo e entrou na barraca que ali está há anos, sem ter de pedir licença e ganhando assim, pelo menos, um teto em cima da cabeça.
Adiante, uma situação insólita. Uma mulher, de 76 anos, faz casa daquilo que foi uma antiga taberna. Ao lado, o passado: uma habitação destruída pelo fogo que nunca foi recuperada.
Maria José é inquilina do terreno. O senhorio não faz caso daquilo que está em cima das suas terras. “Esta era a taberna da D. Arminda, que era a minha sogra. O terreno tem dono, mas isto [casa ardida e taberna] fomos nós que fizemos”, refere a mulher.

Por ali ainda se vê o antigo edital da taberna, um balcão e uma máquina de café profissional. A porta está aberta, apenas protegida por fitas. Um homem entra e pede uma cerveja. “Vou vivendo do que faço aqui. Ainda vou aviando umas cervejas, umas águas, uns cafés”, relata a septuagenária.
No mesmo espaço está o fogão – já com o jantar ao lume – e uma tábua de passar a ferro. A casa-de-banho é na entrada: vê-se, apenas, uma retrete à turca. “É aqui que eu vivo”, repete várias vezes.
Perguntamos se tem mais divisões. Maria José afiança que sim, mas que não as pode mostrar por causa dos cães. Desconfiamos que não, até porque não ouvimos o ladrar de quaisquer animais à presença de estranhos. “Se tem cozinha do outro lado, por que tem o fogão aqui”, interrogamos. A resposta sai atrapalhada. “Olhe, porque os cães, se estivesse lá dentro, saltavam-me para cima do fogão.”
Mora na Quinta do Alto há cerca de 60 anos. O companheiro tinha uma casa em Camarate. Já morreu e Maria José ficou de fora da herança. “São cinco herdeiros e a minha cunhada é que é a cabeça de casal. Eu fiquei sem direito a nada. Não tenho mais casa nenhuma, só isto.”
Sem grandes rendimentos, garante que se os donos do terreno lhe pagarem, mesmo sem ter para onde ir, abandonará o local. “Se me derem dinheiro, saio.”
Maria José vive, também, da apanha e venda de sucata, que vai acumulando no logradouro. O lixo acumula-se, mas a idosa parece indiferente como se já se tivesse habituado às fracas condições em que mora.
Conta que no bairro há, sobretudo, gente a trabalhar nas oficinas de automóveis. “Mas também há pessoas a morar.”
Percorremos o bairro. Encontrámos mais barracas, sobretudo desabitadas, porque quem lá vivia foi, entretanto, realojado em Chelas. Apurámos que os restantes moradores, em barracas, casas abarracadas ou ruínas, são uma imigrante brasileira e um grupo de ucranianos que ocupa o andar superior de um edifício contíguo a uma antiga casa senhorial, que se diz ter sido uma das casas dos condes de Vila Real.
O 24Horas subiu a escada íngreme de ferro que dá acesso ao primeiro andar onde estão os imigrantes de Leste. Apesar de à porta estarem estacionados vários carros, até de gama alta, ninguém nos atende. “Eles fecham-se para lá e não falam com ninguém. O que eu sei é que têm sempre grandes carrões à porta”, opina Maria de Fátima, a habitante da taberna.
Junto à casa senhorial há um armazém de construção civil e uma cancela enferrujada que foi, em tempos, a guardiã da entrada do palacete. Em frente, o muro do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) e uma rua à esquerda de prédios de classe média, de onde já se avista a avenida do Brasil.
Antes de terminar a reportagem, o 24 Horas despede-se da Quinta do Alto com paragem no único café que por ali insiste em estar aberto. A dona da casa, ainda sem saber o que andávamos por ali a fazer, atira logo que não tem tempo para conversas. Faz do primeiro andar do estabelecimento morada, num edifício também autoconstruído.
Três idosos juntam-se nas mesas. Bebem cervejas, jogam às cartas e põem a conversa em dia. Curiosos com a presença de jornalistas fazem alguns comentários. “Isto já esteve cheio de gente, mas foram quase todos para Chelas”, diz um. “Esse açoriano não tem direito a casa porque a morada dele era na casa de uma irmã. Nunca teve morada aqui”, atira outro, sobre o antigo morador da barraca demolida há um mês. O terceiro volta a frisar a presença “dos ucranianos que andam para aí, mas ninguém os vê.”
Talvez seja natural. É que à noite não há iluminação pública naquele pedaço de terreno, escondido e esquecido, que assim mergulha na escuridão.
PROBLEMA DA HABITAÇÃO TEM 100 ANOS
O problema da habitação, na cidade de Lisboa, vem de longe. Entre o início a meados do século passado chegaram a Lisboa muitos migrantes oriundos de outras zonas do país. Buscavam melhores condições de vida e o trabalho nas fábricas, que existiam dentro da cidade.
Era o caso das fábricas de sabão, fósforos, moagem, tabaco e a fábrica de armamento de Braço de Prata, na zona oriental de Lisboa. Na zona ocidental havia a fábrica da pólvora, a fábrica da bolacha, uma fábrica de fiação, a fábrica de chocolates ‘Regina’ e a fábrica da farinha ‘Predilecta’, em Alcântara e Campo de Ourique.
Foi assim que nasceram as primeiras barracas na capital. O Casal Ventoso, à época um bairro apenas de gente pobre, foi sendo povoado. Cresceram núcleos nas zonas contíguas entre a freguesia da Ajuda e de Alcântara, por exemplo, no Rio Seco.
A partir da década de 70 o problema agudizou-se, sobretudo pela chegada massiva de retornados das antigas colónicas portuguesas e, após as independências, também de muitos africanos. Sem outra alternativa de habitação – dado que à época o arrendamento já não era para todos os bolsos e ter casa própria era um luxo de poucos – começaram a construir-se mais barracas.
Foi assim que nasceram enormes bairros de lata, a perder de vista, como a Curraleira, Vale Escuro, Musgueira, Calvanas ou o bairro auto-construído de São João de Brito, este em terrenos camarários, com um enclave no meio: a Quinta do Alto, de propriedade particular. Nos bairros misturavam-se famílias muito diferentes, desde as que vieram do Norte e Interior do país, aos retornados, africanos e ciganos.
As barracas foram alastrando ao longo do século XX até que em 1993, no Governo de Cavaco Silva, foi aprovado o PER – Plano Especial de Realojamento – . O programa tinha como objetivo acabar com as barracas nas áreas metropolitanas de Lisboa em Porto.
Só na capital havia, na altura, mais de 10 mil barracas, distribuídas por 97 núcleos e com um total de 37 299 moradores.
Além de o alojamento ser precário começaram a aparecer outros problemas, tais como o tráfico e consumo de droga, sobretudo na Curraleira, Musgueira, e no Casal Ventoso, que chegou a ser apelidado de ‘maior supermercado de droga da Europa’.
Tudo isso acabou. Quem nasceu no século XXI não imagina o que eram os bairros de barracas em Lisboa, nos anos 80 e 90. Depois do levantamento da população que morava nas barracas e casas abarracadas, começaram a ser construídos prédios de habitação social. À medida que estavam prontos as barracas iam abaixo.
Ninguém, que estivesse nestas condições, ficava sem teto. A Curraleira foi abaixo e a população realojada nos prédios a estrear da Quinta do Lavrado. A arquitetura é muito semelhante à da Quinta do Loureiro, junto à avenida de Ceuta, onde foi realojada a maior parte da população do Casal Ventoso. A Alta de Lisboa – uma parceira público-privada que nasceu em 1984 – deu lugar, também, a alguns prédios de realojamento, numa malha urbana que os mistura com edifícios de classe média e média alta.
Hoje, além das barracas da Quinta do Alto, é cada vez mais comum ver pessoas, e até casais, a viver na rua, dentro de tendas, e em edifícios devolutos.