“Lembro-me bem de haver dois chineses na minha rua, era eu miúdo”, recorda Francisco Trindade, 78 anos, alfacinha de Alcântara. “Um era o barbeiro; o outro andava pela rua a vender pentes e gravatas. Tinha uma gabardina que abria e, por dentro, era uma espécie de mostruário, tinha as cangalhadas. Era muito engraçado”. Francisco era na época uma criança e Lisboa estava na primeira metade da década de 50 do século passado.
A imigração, tema tão badalado atualmente, afinal vem de longe. A primeira vaga de imigração em Portugal é chinesa e remonta aos anos 30 do século XX. “Em 1930 veio um grupo de cerca de 120 imigrantes chineses. Vieram de outros países da Europa”, explica Y Ping Chow, presidente da Liga dos Chineses em Portugal e descendente dessa primeira geração de imigrantes.
Hoje os chineses representam 3,3% do total de imigrantes em Portugal, segundo a Pordata. “Aqui há uma ideia dos imigrantes bem-comportados, que não dão problemas, que são os chineses e os cidadãos de Leste”, observa Irene Rodrigues, antropóloga e especialista em migrações chinesas.
Y Ping Chow volta às memórias que lhe foram transmitidas em família. O avô foi um dos que veio nesse primeiro grupo de imigrantes. Naquele tempo, os chineses eram sobretudo vendedores ambulantes. “Vendiam artesanato que tinham trazido da China. Eram pessoas que vinham à procura de melhores oportunidades, de ganhar algum dinheiro e depois mandaram vir os familiares”. Uma diáspora que se foi prolongado até aos dias de hoje.
LÍDER DA ‘LIGA DOS CHINESES EM PORTUGAL’ CHEGOU CÁ COM APENAS SEIS ANOS
Y Ping chegou a Portugal aos seis anos, com a mãe e um tio, em 1962. “Fui para a escola primária e, nessa altura, nunca ninguém tinha visto um menino chinês. Faziam uns gestos, a puxar os olhos para trás, brincavam… A integração, no caso da minha geração, foi mais fácil porque começámos a aprender a língua. Para os mais antigos foi mais difícil porque não falavam português e para se estabelecer relações de confiança não basta sorrir e ser simpático”, afiança o chinês que se tornou um empresário de sucesso e hoje é, também, presidente da Câmara de Comércio Portugal-China Pequenas e Médias Empresas.
“No início do século XX, depois das Guerras do Ópio, a China abriu-se ao comércio. Aos portos chineses começaram a chegar barcos europeus e a contratar chineses, portanto os locais, como marinheiros. Os chineses chegam aos principais portos europeus, como Marselha, Liverpool ou Roterdão, por essa via. Começaram a instalar-se nessas cidades e daí o aparecimento de certos serviços, como as lavandarias, os sítios para comer, para dormir e o comércio. Deixam o trabalho como marinheiros e, com o tempo, concentram-se no comércio”.
Em Portugal, a venda ambulante de gravatas prende-se com o que era o produto chinês. “Eram as gravatas de seda e a seda vinha da China”, acrescenta Irene Rodrigues. No entanto, a escolha do nosso país nada tem a ver com a ligação a Macau, naquela época parte do território ultramarino. “Os chineses foram andando pela Europa e quando encontravam um bom sítio ficavam. Foi o que aconteceu aqui”, afirma Y Ping Chow. Irene Rodrigues confirma. “Nada tem a ver com Macau. Nem mesmo o grande fluxo de imigração chinesa que houve no final dos anos 90, início dos anos 2000 – que coincide com a passagem de Macau para a China – teve a ver com isso”.
CASAMENTOS MISTOS E ENCONTRO ANUAL EM FÁTIMA
Eram sobretudo homens jovens a vir para a Europa. Por cá, houve casamentos entre chineses e portuguesas, mas também “entre chinesas e portugueses. Há esses registos apesar de não ser uma situação bem esclarecida, porque as famílias não gostam muito de falar sobre isso”, observa Irene Rodrigues.
A integração foi avançando de tal modo que Fátima começou a ser ponto de encontro, a 13 de Maio, da comunidade chinesa, a partir da década de 60. “Lembro-me de ser criança e ir a Fátima onde via muitas crianças fruto dessa mistura entre portugueses e chineses”, afirma Y Ping Chow.
Este encontro num local de grande simbolismo para os católicos prende-se, precisamente, com esses casamentos mistos, que eram celebrados em Portugal segundo os rituais da religião dominante. Nos encontros em Fátima “nem todos são católicos mas acabaram por arranjar, desta maneira, uma data certa para se poderem reunir”.
Da venda ambulante, às fábricas de gravatas, nos anos 30, 40 e 50, os chineses passaram a dedicar-se a outros negócios. Os restaurantes chineses – que hoje são vulgares – eram verdadeiros locais de culto gastronómico exótico quando surgiram, na década de 60. O primeiro foi aberto no Porto, junto à ponte D. Luiz, pertencia aos tios de Y Ping Chow e ainda hoje está na família. “Copiámos o que já existia na Alemanha e em França, que eram os restaurantes. Na altura, em 1968, eu andava a estudar e no final das aulas ia ajudar no restaurante como porteiro, o que era ótimo porque ganhava mais dinheiro com as gorjetas”, recorda o empresário. “O restaurante era de luxo e os ricos queriam experimentar a nossa comida”.
POR QUE NÃO SE VÊEM FUNERAIS DE CHINESES EM PORTUGAL
Y Ping Chow acabou por casar-se com uma chinesa. Uma história curiosa e que começou no restaurante. “Havia um cozinheiro, que tínhamos mandado vir de Taiwan, e foi ele que me apresentou a minha mulher, não pessoalmente, porque ela estava na China. Era uma rapariga com quem comecei a trocar cartas e só a conheci no dia do casamento”. Um enlace que deu certo e, já em Portugal, frutos: duas filhas, um filho e netas. “As minhas netas já só falam português ou alemão”. Por isso, ao contrário da maioria dos chineses, a família Chow tem três jazigos em Portugal e não tenciona regressar à China. “Para mim já não faz sentido, porque não tenho lá a minha família, só bons amigos”.
Porém, a maior parte dos chineses volta ao Oriente na idade da reforma ou quando têm algum problema de saúde. “É esse o costume até porque muitos têm a ideia de que alguém que fala a mesma língua e tem a mesma cultura poderá tratar melhor da sua saúde”, explica Irene Rodrigues.
INDOSTÂNICOS SUBSTITUEM CHINESES NO MARTIM MONIZ
A perceção atual é a de que se veem menos chineses em certos locais onde era costume haver uma grande concentração destes imigrantes. É o caso do Martim Moniz, em Lisboa. Os chineses foram, aos poucos, sendo substituídos por outros asiáticos como bengalis ou paquistaneses. A justificação está na prosperidade alcançada ao longo das gerações. “Agora estamos num patamar mais alto. Os chineses vão passando as suas lojas e restaurantes a outros imigrantes e mudam-se para zonas mais bem situadas”, desvenda Y Ping Chow.
O facto é corroborado pela académica Irene Rodrigues. “Os chineses já estão mais bem organizados na vida, têm mais dinheiro e procuram zonas geográficas melhores. No caso de Lisboa, se antes estavam no Martim Moniz, agora podemos encontramo-los em Benfica ou Alvalade. Ou seja, conseguiram os seus objetivos de terem mais rendimentos e juntarem-se à classe média”.
Portugal continua a acolher imigrantes chineses mas o perfil tem vindo a alterar-se. “Atualmente temos muitos estudantes de todos os graus do ensino superior e, depois, temos os imigrantes dos Vistos Gold, que procuram uma vida diferente noutro país. Querem viver em sítios menos poluídos, com menos gente, ter outro estilo de vida”.
Apesar da integração os chineses mantêm vivos alguns aspetos da sua cultura. “Vivem muito o Ano Novo Chinês, que é uma grande festa de família semelhante ao nosso Natal, e fazem questão de continuar a comer comida chinesa em casa e de frequentar muito os circuitos chineses, mesmo aqui em Portugal”, conclui Irene Rodrigues.


