José Paulo Fafe *
Estávamos em 2009, já lá vão mais de 16 anos. Em Portugal, que naquele ano tinha sido palco de três eleições sucessivas – autárquicas, legislativas e europeias – vivia-se o declínio do consulado de José Sócrates, que apesar de ter acabado de ser reeleito para a chefia do governo, começava visivelmente a perder a mão no país. Na economia, os reflexos da recessão de 2008, em que a falência do Lehman Brothers tivera um impacto brutal, começavam a sentir-se em Portugal; na política, começava a sentir-se um certo cheiro a enxofre, tais as sucessivas suspeições envolvendo políticos e empresários que começavam a marcar a agenda; e o otimismo que marcara o primeiro governo de Sócrates dera lugar a um visível fim de festa, onde a desconfiança e falta de fé em que viriam tempos melhores estava patente. Estávamos então a dois anos da entrada da troika e também da de Pedro Passos Coelho que, nas eleições antecipadas, que viriam ter lugar a Junho de 2011, substituiria Sócrates e os socialistas no governo.
Cavaco Silva entrava já na ponta final do seu primeiro mandato como Presidente da República, também ele pífio e muito aquém do que poderia esperar; no futebol, o Porto ganhara o campeonato de futebol, o Belenenses descera de divisão, e a seleção, após a desilusão do Euro 2008, tentava o apuramento para o Mundial, que se disputaria no ano seguinte; lá por fora, Portugal preparava a sua candidatura a membro não-permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas; e o HN1, a maldita gripe A, tinha causado a primeira morte, e até mesmo o encerramento de escolas e jardins de infância.
Normalmente os tempos de crise, são os tempos para fazer grandes negócios. Nuno Vasconcellos, líder da Ongoing, um grupo português nascido quatro anos antes, que atuava nas áreas das telecomunicações, media e tecnologia, sabia-o bem, e não escondia a sua ambição de crescimento e de afirmação em Portugal e no Brasil. Para ele, o momento tinha chegado…
A crise já há muito tinha batido à porta do grupo Impresa, que na altura ainda se dividia entre a Lapa, a Duque de Palmela, e Carnaxide – a ‘débacle’ financeira global só tinha vindo a acentuá-la… A guerra de audiências da SIC com a TVI, dirigida por José Eduardo Moniz, então na sua primeira passagem por Queluz de Baixo, corria mal ao grupo que Francisco Pinto Balsemão começara em 1973; o Expresso ainda se ressentia da saída de José António Saraiva, que batera com a porta para ir fundar o Sol; e as dívidas, essas, começavam a acumular-se. Só à banca, no caso ao BPI do seu amigo Artur Santos Silva, e em cuja administração pontificavam dois antigos jornalistas do Expresso, os solícitos Fernando Ulrich e José Amaral, o grupo onde Balsemão punha e dispunha devia quase 100 milhões de euros, uma verdadeira enormidade.
Nuno Vasconcellos sabia bem das dificuldades do grupo. Afilhado de casamento de Francisco Pinto Balsemão, de quem seu pai, Luiz Vasconcellos, foi sócio e o amigo de sempre, e com quem fundara o Expresso, Nuno era desde sempre visita da Rua das Nogueiras, na Marinha. Balsemão, o ‘tio’, tal como Nuno sempre o tratava, achava piada ao ‘Nuninho’, gabava-lhe a audácia, uma certa rebeldia, e até o lado de ‘bon vivant’ que o afilhado desde sempre cultivara, três caraterísticas que ele só com alguma dificuldade descortinava nos seus cinco filhos.
Luiz Vasconcellos, pai de Nuno, foi até morrer, em Janeiro de 2009, o amigo de vida de Francisco Pinto Balsemão. Amigo e parceiro de negócios, diga-se de passagem – no Expresso, claro, onde Luiz foi responsável pela entrada da Sociedade Nacional de Sabões, de que a família de Maria Isabel ‘Belucha’ Rocha dos Santos, sua primeira mulher e mãe de Nuno, era dona; no Banco Privado Português, o banco de João Rendeiro, onde Balsemão chegou a deter 5 por cento e a ser presidente do Conselho Consultivo; mas também, por exemplo, na Union Española de Explosivos, um dos principais fabricantes europeus de minas militares (sim, daquelas que traiçoeiramente matam e decepam…), onde Balsemão detinha, em nome (‘et pour cause’…) do seu amigo Luiz, uma posição acionista de algum relevo.
Quando o jovem Nuno Vasconcelos, na altura com 44 anos, e que então controlava 7 por cento do grupo Impresa, se abalançara um ano antes, à frente da Ongoing, a comprar por mais de 25 milhões de euros aos italianos da RCS Media Group os títulos Diário Económico e Semanário Económico, a chamada Económica SGPS, Balsemão torceu o nariz, uma atitude mais do que habitual de quem nunca gostou de ver concorrência à sua volta, mesmo que esta fosse ‘de casa’.
Mas poucos meses depois da compra da Económica, e já após o desaparecimento do pai de Nuno, a Ongoing resolveu aumentar a sua posição na Impresa de 7 para 18 por cento, numa operação que envolveu cerca de 18 milhões de euros. Balsemão, já com as contas do seu grupo a mostrarem ‘fadiga’, não teve outro remédio senão aceitar o reforço de posição da Ongoing, que acabara de fazer um aumento de capital onde encaixara 100 milhões de euros. Se já era ‘da casa’, Nuno Vasconcellos passou ainda a ser mais, a ponto de, em Abril do ano seguinte, passar mesmo a integrar o conselho de administração em representação da Ongoing.
Nessa altura, Nuno já começava a ser um ‘player’ de respeito no setor dos media e das telecomunicações. E isso deixava o sempre desconfiado Francisco Balsemão de pé atrás. Além dos 18 por cento que possuía do grupo do seu padrinho, a Ongoing já era acionista de referência de empresas como a Portugal Telecom, onde detinha 10 por cento e, juntamente com o Grupo Espírito Santo, uma palavra determinante a dizer no que à condução desse gigante das telecomunicações dizia respeito. Mas também, por exemplo, da Zon Multimédia (a antiga PT Multimédia, dona da TV Cabo): “Balsemão começava a ver o Nuno como alguém que podia ‘crescer’ demasiado, o atrevimento que ele mostrava nos negócios incomodava-o, ainda por cima, depois do seu amigo Luiz ter falecido, sabia que não o controlava”, conta-nos alguém que sempre se movimentou naquele círculo.
A desconfiança de Balsemão relativamente a ‘Nuninho’, começou a tornar-se uma obsessão, especialmente a partir do momento em que – ele mesmo o afirma nas suas ‘memórias, publicadas em 2021 – se convence que o filho do seu grande amigo Luiz Vasconcellos, desaparecido em Janeiro de 2009, está a preparar uma “ocupação” da Impresa pela Ongoing, um episódio que ele chegou considerar como “(…)uma das maiores e mais dolorosas batalhas da minha vida empresarial”.
No meio desses receios e desconfianças, Balsemão apontava também o dedo a Ricardo Salgado, o todo-poderoso líder do Grupo Espírito Santo (GES), com quem já andava de candeias às avessas desde há uns anos, e de quem se queixava de apoiarem Nuno e a sua Ongoing. Há muito, aliás, que as relações entre Balsemão e a família Espírito Santo não eram as melhores, especialmente desde 2005, quando o GES cortara relações com a Impresa, acusando-a publicamente de “fazer uma campanha sistemática para forçar o grupo a aumentar os investimentos publicitários” nos seus títulos. Por outras palavras, Salgado acusava, com todas as letras e mais alguma, a Impresa de exercer chantagem sobre o seu grupo. O resultado prático desse corte de relações foi que o investimento publicitário do GES nas televisões e jornais de Balsemão baixou esse ano de 3,2 milhões para 140 mil euros…
Diga-se de passagem, que estas suspeições sobre a forma de atuar do grupo Balsemão, que por diversas vezes foi acusado de montar campanhas nos meios do grupo para, a seguir, trocar o silêncio por um maior investimento publicitário, já tinham anos, era algo de que se falava à boca pequena nos meios empresariais e no mundo da publicidade, e que era visto como um modo de atuação habitual daquele grupo de media.
Mas adiante, voltemos então a 2009…
Fim da primeira parte
* Antigo jornalista e CEO do 24Horas