Nascido e criado no anti-salazarismo, tendo vivido a minha infância e pré-adolescência no seio de uma família claramente oposicionista, não...
Nascido e criado no anti-salazarismo, tendo vivido a minha infância e pré-adolescência no seio de uma família claramente oposicionista, não posso, em nenhum caso, admitir que o país, tal como afirmou André Ventura, precise “não de um, mas de três Salazares”, longe disso.
Para mim, o salazarismo cheira a atraso, a mofo, a mesquinhez, a repressão. Salazar, ele próprio, representa todo o contrário dos valores em que tive a sorte de ser educado e formado – foi alguém que se recusou a entender a evolução do mundo, que teimou em manter o país e o regime de que foi prócere numa rota que inevitavelmente os levaria ao colapso político e também económico, e que ‘carrega’ alguns mortos no seio de quem se lhe opunha.
É indiscutível que a herança de Salazar foi pesada, só pode negá-lo quem opte por ver o mundo a preto e branco, quem não queira ver os desmandos de uma polícia política que muitas vezes não hesitou em matar, quem não conheça os assustadores índices de analfabetismo ou a triste taxa de mortalidade infantil, ou quem recuse entender que os custos de uma descolonização tardia se devem única e exclusivamente a uma obstinação mantida ao invés do rumo que o mundo tomou desde a década de 50
Mas reconheça-se que Salazar teve o seu tempo – isso é indiscutível. E mérito, até: equilibrou umas finanças públicas feitas em cacos; preparou e levou habilmente o país a escapar de uma Segunda Grande Guerra que destruiu a Europa; e susteve, em alguns casos, o apetite voraz dos grandes grupos económicos, condicionando a sua expansão sem regras ou travões.
Mais: Salazar granjeia até hoje, 55 anos após a sua morte, a imagem do homem sério, impoluto, avesso aos encantos do dinheiro e das prebendas e mordomias. Mesmo quem sempre se lhe opôs ferozmente e foi sua ‘vítima’, caso de Mário Soares, soube, ainda há poucos anos, reconhecer isso mesmo, que Salazar – cito – “nunca mexeu em dinheiros públicos”.
Não é por acaso que essa imagem de homem íntegro nunca descolou de Salazar, acusado de tudo e mais alguma coisa, menos, reconheça-se, de ser corrupto, de se locupletar com bens ou fundos públicos. Como também não é por acaso que há uns anos, num ‘concurso’ levado a cabo pela televisão pública em plena era democrática, o ditador foi considerado ‘o maior português de sempre’ – lembram-se?
Ao afirmar que o país precisa “não de um, mas de três Salazares”, num momento em que o país parece viver num contínuo clima de suspeição, onde todo e qualquer político é alvo e muitas vezes vítima de um escrutínio implacável e de quando em vez a passar as marcas do razoável, Ventura apenas quis habilmente aproveitar-se dessa imagem de impoluto que Salazar conseguiu granjear.
Talvez tivesse sido mais feliz se tivesse condicionado a sua frase, e lembrado o ‘outro lado’ de Salazar, leia-se a repressão do seu regime, o atraso de que foi responsável, e as culpas que o ditador possui num processo de descolonização tardio. Bastava-lhe acrescentar um ‘apesar disso’ e podem ter a certeza que a reação teria sido outra.
Ou então, invocar outro que possui igualmente a aura de homem impoluto – Cavaco Silva, esse um pouco mais abrangente em termos políticos. Era só dizer que o país precisava, não de um, mas de três cavacos. Apesar do caso BPN, é claro…