Nos últimos três anos morreram 757 idosos sozinhos em casa nos centros urbanos portugueses, de acordo com a PSP. O abandono e a solidão formam uma realidade cada vez mais presente na vida dos idosos em Portugal. No entanto, há quem quebre o isolamento. O 24Horas foi ouvir o testemunho de dois idosos que têm muito para contar às gerações mais novas.
Foi através do Coração Amarelo, uma associação portuguesa que combate a solidão dos idosos e que conta já com 12 delegações espalhadas pelo país, que o 24Horas conheceu a histórias de João e de Rosa. Singulares, lutadores e com pressa de viver. Este é um breve, mas íntimo, resumo da vida de dois portugueses que vivem hoje abraçados pela humanidade de uma associação que vai contrariando uma sociedade que, por vezes, teima em esquecê-los.
João, de 77 anos, sofre de cegueira e vive há 10 anos na Fundação Lar de Cegos de Nossa Senhora da Saudade, em Campo de Ourique, Lisboa. Apesar das vicissitudes provocadas pela doença, nunca permitiu que esta lhe retirasse a independência e a vontade de viver.
Foi na instituição onde vive que conheceu a Associação Coração Amarelo, que o ajuda a combater o isolamento. “Sentimos muitas vezes o peso da solidão, mesmo estando numa instituição, onde há muita gente”, conta João, para explicar que a distância da família, que não consegue estar presente de forma permanente, é aquilo que mais lhe custa.
Mas nem sempre foi assim. Pai de duas filhas, Raquel e Joana, João é natural de Lisboa e cresceu perto da rua onde agora vive, no bairro de Campo de Ourique. Recorda uma infância feliz, rodeado de família. A mãe era doméstica e o pai estava ligado à engenharia civil, caminho pelo qual João, querendo seguir as pisadas do progenitor, também tentou enveredar. Porém, não criou grande amizade com os livros e a sua história viria a ser outra.
Viveu uma vida cheia, em que fez muito e foi muita coisa: filho, irmão, marido, pai e avô. Estabeleceu-se profissionalmente na área da eletrónica, trabalhou em diversas empresas, algumas delas multinacionais, foi músico e chegou a ir para Moçambique, aquando da Guerra Colonial.
Olha para o passado com enorme saudade, sobretudo dos tempos em que foi músico. Era guitarrista, tocou em várias bandas entre Portugal e Moçambique. Algumas com elevado impacto, como é caso dos Chinchilas, grupo musical dos anos 60 pioneiro do rock psicadélico em Portugal. Diz que, nessa época, eram muitas as vezes em que chegava a casa já de manhã. Enumera uma panóplia de
peripécias, típicas de uma vida que apelida como boémia e namoradeira, mas que interrompeu assim que conheceu a ex-mulher. Um ano depois de se conhecerem, casaram e, mais tarde, tiveram duas filhas. Para conseguir dar à sua família uma vida confortável, João acabou por dedicar-se ao trabalho, o que resultou num caminho profissional algo desgastante que traria consequências.
Foi aos 58 anos, já divorciado, que atingiu a perda total da visão, gerada por um glaucoma que agravou a miopia que o acompanha desde criança. Nem assim João deixou de trabalhar. Fez reabilitação para aprender a viver com a doença e prolongou a sua vida profissional por mais dez anos, período em que, apesar de cego, viveu sozinho.
“Conseguia fazer quase tudo: passava roupa a ferro, estendia, cozinhava, entre várias outras coisas. A reabilitação foi fundamental para este processo. Aprendi várias estratégias para o quotidiano. A organização para uma pessoa com esta doença deve ser redobrada.”
Problemas pulmonares e a impossibilidade de ser permanentemente acompanhado pelas filhas, de quem tem netos pequenos, estiveram na origem da sua procura por um apoio mais constante, e foi com 68 anos que foi viver para a Fundação Lar de Cegos de Nossa Senhora da Saudade, onde a sua mãe, que tem 97 anos e sofre de demência, também vive.
Revela que ao chegar ao lar a sua principal dificuldade foi o ambiente, o deparar-se diariamente com pessoas que vivem em situações problemáticas e depressivas. Hoje é acompanhado por uma voluntária e por uma psicóloga da Associação Coração Amarelo, com quem partilha momentos de diálogo “que se tornam quase pessoais”.
João afirma: “Ainda não perdi o espírito jovem e procuro estar sempre ocupado. Assusta-me o fim, só peço que seja repentino.” Está a aprender a tocar piano no lar com uma professora, frequenta os bailes organizados pela Junta de Freguesia de Campo de Ourique aos sábados, ouve música e lê livros em formato digital. “Gostava de ser recordado como um bom avô”, finaliza.
Laura Ramalho, de 35 anos, é a voluntária do Coração Amarelo que, todas as semanas, acompanha João. Refere que a pandemia a alertou para o problema da solidão das pessoas idosas, pelo que procurou ter um papel ativo no combate a este flagelo. “Sinto uma enorme injustiça em ver que as pessoas, depois de trabalharem uma vida inteira, chegam a uma certa idade e ficam sozinhas.”
UMA VIDA QUE DAVA UM FILME
Rosa, de 76 anos, é natural de Valdevez, na freguesia de Ucanha, em Tarouca, e vive sozinha num apartamento em Lisboa. Foi numa banca de rua que conheceu o
trabalho desenvolvido pelo Coração Amarelo e demonstrou interesse em saber mais. Hoje é acompanhada todas as semanas por uma voluntária da associação. Rosa, que é uma mulher de armas, independente e proativa, recorreu a este apoio como uma forma de combate à solidão.
“A ajuda da associação é mais pela companhia e a companhia é essencial. Agora já estou tão agarrada ao Coração Amarelo, que não me vejo sem ele”, afirma. Ressalva que não é uma pessoa completamente só, visto que tem dois filhos que a acompanham, mas têm vidas que não lhes permitem estar sempre presentes.
A vida de Rosa dava um filme, daqueles cheios de reviravoltas inesperadas, cujo desfecho depende apenas da protagonista. Nunca se deu por vencida, arregaçou as mangas e foi à luta para dar um final feliz à sua vida.
Mudou-se para a vila de Tarouca a meio da infância e por lá casou com o primeiro marido, com quem teve a primeira filha, aos 22 anos. Tudo corria bem no seu casamento, Rosa trabalhava a fazer bordados à máquina, o marido era mecânico de automóveis, o segundo filho vinha a caminho e o casal tinha acabado de comprar uma casa, com a ajuda de um empréstimo do banco. Mas a relação tornou-se abusiva e enganosa. Rosa chegou a ser agredida pelo marido, perdeu todas as suas poupanças e pediu o divórcio.
Rosa relata ao 24Horas esta dura realidade com um vazio no olhar. “Era uma coisa que eu nunca esperaria que me acontecesse, apesar de lá na terra muitos tratarem assim as mulheres.”
Um dia, já com o segundo filho e com o divórcio ainda por assinar, dado que o marido tinha partido para Moçambique numa missão militar, Rosa estava a estender roupa num tanque com a filha, quando foi advertida por uma vizinha que um homem tinha forçado a entrada em sua casa e que estaria deitado no chão. O marido tinha regressado para se suicidar. Foi a primeira vez que enviuvou, aos 29 anos. “O embate que sentimos ao ver uma coisa daquelas, não sei se algum dia vou esquecer”, revela.
Mas a vida não podia parar e havia dois filhos para criar. Rosa decidiu mudar-se para Lisboa, onde se revigorou. O começo foi difícil. Viveu em casa das irmãs e continuou a fazer costuras para se sustentar. Embora estivesse a seguir em frente, as marcas causadas pela morte do marido permaneciam vivas: “O trauma foi imenso. Eu não me convencia de que ele tinha falecido, estava em Lisboa e via o meu marido em qualquer carro que passava por mim.”
Desistir não era opção. Arranjou trabalho como funcionária pública e com os bordados que fazia nas horas extra, conseguiu arranjar uma casa própria. Após 18 anos sem ter uma relação sentimental, e com ambos os filhos já maiores de idade, conheceu Óscar, o seu segundo marido. Estiveram casados durante 19
anos até que uma doença rara, designada por ‘Doença de Hunttington’, o conduziu à morte. Era a segunda vez que Rosa enviuvara. Hoje, a viver sozinha, recorda o marido com muita alegria e diz estar bem, pois sabe que não está só. Ainda faz bordados, pinturas e muitas outras coisas “não sou pessoa para ficar quieta com uma coisa apenas”.
Rosa termina com um apelo: “Aconselho todos a que tenham uma vida diversificada, porque acabamos por travar a mente, conforme vamos travando a vida. O que interessa é termos a vontade de ir sempre fazendo coisas, sentirmo-nos vivos para fazer coisas.” “Para combater a passividade e a latência sejam rebeldes. Eu sou rebelde”, sublinha.
Maria José Relvas, presidente da delegação de Lisboa da Associação Coração Amarelo, explica ao 24Horas as várias vertentes de ação da associação e assinala a importância de dar uma voz aos idosos. “Para além do acompanhamento que é feito aos docentes, quer por parte dos voluntários, quer por parte dos nossos psicólogos, realizamos tertúlias onde são debatidos diversos temas, fazemos sessões de cinema e temos um protocolo com algumas escolas onde os nossos docentes vão dar testemunho das suas experiências aos alunos, estabelecendo, desse modo, uma conexão entre as gerações mais velhas e as gerações mais novas, que é muito importante”. Maria José conclui: “No fundo aquilo que fazemos é também dar uma voz a estas pessoas.”