Em casa, na rua, nas praias, nos restaurantes ou nos transportes públicos, é cada vez mais frequente as crianças e os jovens passarem horas agarrados a ecrãs. Os smartphones e tablets deixaram de ser meros aparelhos eletrónicos para passarem a ser gestores de birras e uma forma rápida de entreter os mais pequenos e os especialistas alertam para os riscos desta exposição.
O tema, muito atual no mundo, tem motivado preocupações em Portugal e o Governo proibiu, no início do presente ano letivo, a entrada e o uso de telemóveis para os alunos dos 1.º e 2.º ciclos. Mas, afinal, a que riscos estão as crianças sujeitas devido à exposição a ecrãs?
O pediatra Hugo Rodrigues explica, em entrevista ao 24Horas, que há estudos que mostram que o “volume cerebral das crianças expostas precocemente aos ecrãs é mais reduzido que as crianças expostas mais tardiamente”. Além disto, todas as áreas de desenvolvimento sofrem impactos devido a esta exposição.
OUTROS PERIGOS
Para Hugo Rodrigues, é “fácil perceber que o impacto dos ecrãs é enorme”, visto que afetam as crianças em quatro áreas de desenvolvimento. A primeira que destaca é a motor. Segundo o médico, que é seguido por mais de 260 mil pessoas no Instagram, onde dá dicas para descomplicar a maternidade, estar em frente ao ecrã é uma atividade sedentária e, por isso, é contranatura à “contraprogramação inata dos bebés e das crianças”.
A coordenação motricidade fina, que é a capacidade de utilizar as mãos para fazer vários movimentos (como escrever, pintar, desenhar ou recortar), é outra das áreas de desenvolvimento afetadas pela exposição aos ecrãs. Hugo Rodrigues explica que esta capacidade “depende da noção de profundidade” e que esta não existe nos ecrãs, que são sempre bidimensionais e não passam de um plano, acabando por afetar a falta de coordenação e de manuseamento de objetos.
Os ecrãs limitam também a aprendizagem não verbal, que só se aprende “através do contacto com as outras pessoas, seja com crianças ou com um adulto”, através da leitura de expressões faciais e da posição corporal. A própria linguagem verbal também é afetada, recorda o pediatra: “Hoje em dia, está mais do que estabelecido que os ecrãs diminuem a capacidade expressiva das crianças do ponto de vista verbal perante a falta da tal reciprocidade e pela falta de interação.”
Do ponto de vista social, o médico assume que os ecrãs afetam ainda a inteligência emocional das crianças, que ficam limitadas na capacidade de interpretarem e expressarem emoções.
Hugo Rodrigues destaca ainda que as telas provocam a ativação das vias de recompensa, responsáveis pela sensação de prazer e diretamente ligadas à zona do cérebro responsável pelas tomadas de decisão. Assim, e visto que “todos nós agimos pelo prazer e as crianças muito mais”, acaba por haver uma “viciação do funcionamento cerebral em prol desta ativação das vias de recompensa”.
O pediatra realça também que estas vias de recompensa são aquelas que são ativadas pelas drogas de abuso e destaca que “não é o ecrã que vicia”, mas, sim, “a sensação de prazer que o ecrã provoca”.

IDADE RECOMENDADA PARA O INÍCIO
Questionado pelo 24Horas sobre qual a idade recomendada para que as crianças iniciem o contacto com o mundo dos ecrãs, Hugo Rodrigues confessa que há diferentes opiniões, optando por falar nos resultados de dois estudos distintos: um, da Sociedade Portuguesa de Neuro-Pediatria, que aponta a idade recomendada para os 3 anos, e outro, da Academia Espanhola de Pediatria, que dá os 6 anos como a melhor idade para as crianças começarem a estar em frente a telas.
Seja qual for a idade, o tempo de exposição a ecrãs é um fator que costuma preocupar os pais. O pediatra realça outro tipo de preocupações que também devem estar na mira dos pais, como os conteúdos e “se existe, ou não, interação com adultos” durante os visionamentos. Ao 24 Horas, o médico explica que a interação entre um adulto e a criança é essencial enquanto se está em frente a um ecrã, já que esta partilha vai ditar um “resultado completamente diferente”, pois permite que os mais pequenos usufruam das telas de forma “completamente diferente”.
Sobre os conteúdos visionados na Internet, Hugo Rodrigues reconhece que há alguns que até “podem ter interesse”: “Há alternativas melhores aos ecrãs.” E o pediatra dá como exemplo os brinquedos que podem ser explorados com as mãos: “Há quase sempre alternativas melhores e os pais, podendo escolher, escolhem habitualmente o melhor para os filhos.” Outro fator importante: “Os ecrãs nunca podem interferir nos momentos de refeição, nos momentos de sono e nos momentos de brincadeira.”
PAIS INFLUENCIAM
Por muito que possamos estranhar o facto de as crianças brincarem cada vez menos e passarem mais tempo em frente às telas, Hugo Rodrigues garante que há “uma relação direta” com o comportamento dos adultos: “Esquecemo-nos de que, em Portugal, há estudos que dizem que os adultos, em média, por dia, utilizam 5, 6, 7 horas as redes sociais.”
Assim sendo, o pediatra salienta que “é impossível querer que as crianças utilizem pouco se temos adultos a utilizar tantas horas. Não é difícil, é impossível.”
QUANDO DEVEM OS PAIS DAR UM TELEMÓVEL AOS FILHOS
Hugo Rodrigues reconhece que atualmente está “quase instituído” que uma criança deve ter o seu próprio telemóvel quando ingressa no 5.º ano de escolaridade, isto é, por volta dos 9/10 anos. No entanto, o pediatra discorda e revela que a maior parte dos jovens com esta idade “não precisa de telemóvel para nada, porque os pais levam-nos à porta da escola e vão buscá-los à porta da escola”.
O pediatra assume, deste modo, que os telemóveis deveriam ser dados às crianças quando estas “têm necessidade de um telemóvel para estarem contactáveis” e considera que, antes dos 10 anos, é um “redondo não” e realça que “quanto mais tarde melhor”.
Muitas vezes, os receios dos pais em verem eventualmente os filhos excluídos por não terem um telemóvel, como os amigos e colegas de escola, não é nenhum drama. Pelo contrário. “Ninguém fica mais excluído ou com pior saúde mental por ter um telemóvel mais tarde do que os amigos”, conta Hugo Rodrigues.
O médico reconhece que fazer esta gestão é difícil e deixa um conselho prático aos pais: “É sempre difícil andar para trás.” E assume que a “liberdade deve ser dada de forma progressiva e lenta”, embora reconheça que “os ecrãs vão acabar por entrar” e que “as crianças vão gostar”. Por isso, essa introdução deve ser feita de forma mais tardia possível e sem pressas.
Por outro lado, os pais devem ainda procurar brincar e estar com os filhos, mesmo que esses momentos impliquem “lidar com momentos de desagrado ou de conflito”.
MOVIMENTO QUER AÇÃO DO GOVERNO
Catarina Prado e Castro é professora do ensino superior e uma das quatro mães fundadoras do movimento ‘Menos Ecrã, Mais Vida’, que foi criado com o objetivo de discutir a proibição do uso de smartphones nas escolas e o fim dos manuais digitais. Em entrevista ao 24Horas, revela que o movimento quer uma “ação do Governo” e que “as escolas são o local prioritário onde essa ação tem de acontecer”, de forma a minimizar os riscos e prevenir danos decorrentes do uso excesso de ecrãs.
Enquanto mãe de duas crianças, com 10 e 12 anos, Catarina Prado e Castro reconhece que é muito difícil gerir o tempo que as crianças estão em frente aos ecrãs. No entanto, revelas as estratégias que adotou em família: “Tenho uma televisão minimalista, com sete canais. Dessa forma, não restringindo, restrinjo.”
Além disso, os filhos só têm acesso a um computador quando precisam e só o mais velho tem telemóvel – e trata-se de um modelo antigo, só de teclas. “É através do smartphone que eles têm este acesso ilimitado e altamente aditivo a conteúdos permanentes.”
Sobre o comportamento das crianças na escola, a fundadora do ‘Menos Ecrã, Mais Vida’ relata o que sentiu quando entrou no recinto escolar dos filhos pela primeira vez: “Via crianças, às nove da manhã, sentadas em degraus, todas a jogar.” Além disso, realça que, enquanto os rapazes passam mais tempo a jogar, as raparigas costumam “estar perdidas nas redes sociais”.

TELEMÓVEIS ACABAM COM BRINCADEIRAS
Para a ativista, o fato de as escolas permitirem que crianças tenham acesso ilimitado a smartphones faz com que os alunos deixem de brincar, com apenas 10 anos. Além disso, a professora do ensino superior refere que os ecrãs interferem na dificuldade das crianças em estudar e ler: “Como é que ler um livro pode ser aliciante comparado com as imagens e os sons de um jogo ou dos vídeos que eles veem?”
Questionada sobre a medida de as crianças até ao 6.º ano de escolaridade serem proibidas de usar smartphones nas escolas, Catarina Prado e Castro salienta que “é pouco” e que a medida devia ser alargada até ao 9.º ano: “As crianças dos 2.º e 3.º ciclo estão nas mesmas escolas. Portanto, não tem sentido as crianças de 10 e 11 anos não poderem usar e depois as de 13 e 14 poderem.”
O FIM DA PRIVACIDADE DAS CRIANÇAS
A fundadora do movimento ‘Menos Ecrã, Mais Vida’ levanta outra questão, a da privacidade das crianças, e garante que esta “é devastada diariamente”, devido à presença de smartphones nas escolas. E dá como exemplo o caso do filho que, apesar de não ter telemóvel, “está sujeito a ser fotografado e filmado por outros colegas”. Catarina acredita que “o cyberbullying é altamente potenciado pela presença de smartphones dentro da escola.”
Além do cyberbullying, a professora defende que os pais não têm a “mínima ideia dos conteúdos a que os filhos têm acesso” e conta que, quando o filho entrou no 5.º ano, começou a “fazer vocalizações de pornografia que via nos telemóveis”.
O movimento ‘Menos Ecrã, Mais Vida’ assume que a exposição de crianças a ecrãs se trata de um “problema de saúde pública” e, por isso, já pediu que a Direção Geral de Saúde atue com campanhas de sensibilização junto da comunidade e que emita orientações específicas para as escolas.
OS EQUILÍBRIOS QUE AS MÃES FAZEM
Andreia Paes de Vasconcellos é mãe de quatro crianças e não vê “com muito bons olhos” o acesso delas aos ecrãs. No entanto, assume que não os consegue vencer e, por isso, tenta que haja “um equilíbrio entre ecrãs e brincadeiras”.

A influenciadora digital, que conta com mais de 90 mil seguidores no Instagram, diz que em casa é “quase uma polícia” e que procura ter as televisões desligadas e os telefones fora do acesso das crianças, de forma a abrir espaço para as brincadeiras entre os irmãos. Já em restaurantes e outros sítios públicos, Andreia opta por levar pinturas e jogos para entreter os pequenos.
Ainda assim, os filhos, principalmente os mais velhos – Tomás, de 10 anos, e Francisco, de 9 – gostam de ver desenhos animados e de mexerem em telemóveis. Já Constança (5) e Teresa (2) não têm grande interesse e os ecrãs “acabam por lhes passar despercebidos”. Todavia, Andreia garante que o conteúdo selecionado é uma das principais preocupações: “Tento que vejam filmes o mais indicados para as idades deles e tento evitar os vídeos brasileiros e coisas sem conteúdo. Já nem tenho YouYube no meu telefone para evitar isso.”
Em entrevista ao 24Horas, Andreia Paes de Vasconcellos reconhece que os ecrãs são muitas vezes vistos pelos pais como um “escape e um bom entretenimento”. Assim, quando necessita que os filhos estejam entretidos, escolhe um filme na Netflix indicado para as crianças. “É como se fossem ao cinema.” Porém, garante que é impensável que os filhos passem uma manhã ou uma tarde em frente à televisão ou ao telefone.
A influenciadora digital considera que faz uma boa gestão, mas reconhece que é mais difícil controlar a situação quando a família passa mais tempo em casa, como ao fim de semana. “Proporciono-lhes muitas atividades lúdicas no exterior. O que sinto em casa é que temos de ser muito firmes e que tem de haver um grande controlo.”
No final da nossa conversa, Andreia recorda o papel dos pais: “Temos de estar sempre atentos. Sou sincera, se deixasse os meus filhos estarem ao telefone, eles estariam horas a fio.”