O dia está a começar numa manhã quente, em Lisboa. No Forte do Alto do Duque, no Restelo, onde funciona a esquadra dedicada ao tráfico de estupefacientes, no âmbito do Departamento de Investigação Criminal (DIC), o 24Horas encontra-se com o chefe Gonçalves Moreno, de 50 anos. É ele que, assim ditou a escala de serviço, está à frente de uma ação previamente planeada de combate ao pequeno tráfico. Neste caso, a equipa parte em busca de traficantes de rua que têm, na sua posse, pequenas quantidades de droga que vão vendendo até de madrugada.
Um automóvel cinzento, descaracterizado, aproxima-se. Ao volante vem o agente principal Jorge Duarte, 48 anos. É um dos polícias mais experientes na área, na zona da baixa lisboeta. “Neste momento, é um dos elementos responsáveis pela investigação da venda direta ao consumidor naquela área. O Duarte, na vertente da venda direta ao consumidor na área da Baixa, é talvez o agente mais experiente que temos”, afiança Gonçalves Moreno, em exclusivo, ao 24Horas.
O carro arranca ziguezagueando por entre o trânsito. Vamos em direção à praça do Martim Moniz onde indivíduos oriundos de alguns países africanos se encontram a traficar haxixe e liamba. Misturam-se por entre quem passa no frenesim do centro da capital portuguesa. Porém, não passam despercebidos a quem ali habita ou tem comércios. “Recebemos muitas queixas, porque as pessoas sentem-se inseguras”, continua o chefe da PSP.
Estes pequenos traficantes são, avança Gonçalves Moreno, indivíduos que “estão em Portugal há relativamente pouco tempo, com pedidos de asilo que ainda não foram decididos, e a forma de irem sobrevivendo, além do apoio que têm das prestações sociais, na sequência do pedido de asilo, é esta”: “É lógico que não conseguem sobreviver só com esses apoios sociais.”
DISFARCES INCRÍVEIS
Os polícias, por sua vez, utilizam muitas vezes disfarces para não serem detetados pelos traficantes. “Se nós temos um olho clínico para os detetar, eles também o têm para nos ver”, explica Jorge Duarte. “Já nos fizemos passar por engenheiros de obras, já fui vestido de turista, com um trolley e um chapéu azul. E tenho um fato espetacular dos indianos, que é uma espécie de burca”, prossegue. Infiltrar-se por entre a multidão de turistas que aguarda na paragem pelo célebre elétrico 28 é outra das estratégias. “Muitas vezes, misturamo-nos lá no meio e ficamos a observar.”
A clientela dos pequenos traficantes do Martim Moniz é sobretudo composta por turistas. “Há na Internet sites onde se divulga onde comprar droga em Lisboa. No caso deste tipo de drogas, anuncia-se o Martim Moniz ou o miradouro de Santa Catarina, por exemplo”, revela Moreno Gonçalves. “Não é aquele cliente fixo que precisa da droga no seu dia a dia. Estamos a falar, essencialmente, de turistas, que chegam a um país, querem consumir algum tipo de estupefaciente, muitas vezes na noite, e então recorrem a estes locais.”
Os traficantes de rua aproveitam para lucrar. “Vamos admitir que eles compram 50 euros de haxixe; esses 50 euros conseguem transformá-los em 200. Os turistas não se importam de pagar quatro vezes mais o valor do que na verdade aquilo custa.”
Pelo caminho, o chefe e o agente principal vão comunicando com os polícias que já se encontram no terreno. Moreno fala ainda com uma pessoa que lhe facilitará o acesso a um telhado, para ter uma visão mais completa do que se passa: “São conhecimentos que nós arranjamos… Esquemas de trabalho que nos facilitam. Não lhe posso revelar quem são estas pessoas nem como conseguimos estes contactos.”
Estamos a chegar ao Martim Moniz. Jorge Duarte estaciona junto ao ‘spot’ planeado para observarmos toda a ação. Um imigrante brasileiro – antigo polícia no seu país – alinha com a PSP e tenta facultar-nos acesso ao telhado do edifício. Sem sucesso. A chave não abre a porta envidraçada. Tentamos outro spot. Tarde demais. Na praça, três dos operacionais que já lá estavam travam dois homens que traficavam haxixe e liamba. “Eles tiveram de proceder à detenção porque os suspeitos pareciam estar a abandonar o local”, esclarece Moreno Gonçalves.
Os dois africanos foram abordados por três polícias à paisana. Vestidos de forma informal, calças de ganga e T-shirts, ninguém diria qual a sua profissão. Os suspeitos foram surpreendidos com alguma droga na sua posse e mais material escondido, por detrás do murete que envolve a praça: pedaços de haxixe e liamba dissimulados dentro de uma meia preta.
Dois consumidores, que tinham acabado de comprar produto estupefaciente, foram também detidos. Todos foram encaminhados à esquadra da 1ª Divisão Policial de Lisboa, na vizinha rua da Palma. Os consumidores foram inquiridos na qualidade de testemunhas; os suspeitos encaminhados para o DIC, no Restelo, com a finalidade de serem interrogados.
A droga recolhida foi mais tarde, já no DIC, testada – para verificar a sua autenticidade – e pesada. Tudo fatores determinantes para aferir a pena que, posteriormente, um juiz irá atribuir aos dois africanos. “Normalmente, são penas pequenas, penas suspensas, porque se trata de tráfico de menor gravidade”, aponta Moreno Gonçalves.
TÁTICA DOS TRAFICANTES
Ao final do dia, o resultado. A droga é verdadeira: haxixe e liamba. Foram apreendidos 13,30 gramas de haxixe, 3,63 gramas de liamba e 20 euros em dinheiro. “Havia alguém a guardar o dinheiro”, confidencia ao 24 Horas José Conde, outro dos agentes no terreno. Este termina explicando como é o modus operandi dos traficantes de rua. “Eles movimentam-se ali na praça do Martim Moniz, de um lado para o outro. Na passagem de uns pelos outros, entregam o dinheiro e recebem mais droga para vender. Assim nunca são apanhados com grandes somas de dinheiro ou de droga.”
Mais acima, no largo do Terreirinho, Mouraria adentro, o tráfico é mais organizado. Há “vigias” a controlar a chegada da Polícia na esquina do largo com a rua do Marquês de Ponte de Lima, onde estão os vendedores e se acumulam muitos toxicodependentes.
Por aqui, a droga estrela é o crack. A PSP tem feito inúmeras intervenções naquela geografia bem circunscrita, mas o certo é que o tráfico parece renascer por debaixo das pedras da calçada portuguesa. “Todos conhecemos a expressão ‘Rei Morto; Rei Posto’, certo? Cada vez que a Polícia prende um grupo, há dois ou três grupos que querem ocupar aquele espaço”, avança o chefe Moreno Gonçalves.
E, ao contrário do que se possa pensar, não foi o fim do Casal Ventoso, encalhado na colina entra a Av. de Ceuta e a Meia Laranja, que disseminou o tráfico de droga, designadamente cocaína (em pó ou crack) e heroína, pela cidade. “No fundo, só mudaram os nomes. Antigamente, havia o Casal Ventoso, hoje há a Quinta do Loureiro. Havia a Curraleira, hoje há a Quinta do Lavrado. Havia a Musgueira, que hoje é a Alta de Lisboa”, recorda o agente principal Jorge Duarte.
A esquadra dedicada ao combate ao tráfico de droga identifica cinco zonas onde este crime é mais prevalente: Av. de Ceuta/Quinta do Loureiro, Mouraria, Picheleira, Chelas e Ameixoeira. “A situação mais grave é na Quinta do Loureiro (antigo Casal Ventoso)”, adianta Moreno Gonçalves. “Em qualquer um dos locais em que tradicionalmente se vende droga, vai sempre haver alguém a fazê-lo.”
Para Moreno Gonçalves, não há drogas ‘leves’ ou ‘duras’. “Todas fazem mal à saúde e à vida dos consumidores. E nunca ouvi dizer que alguém se inicie pelas ditas drogas duras. Por isso, é preciso combater todas as drogas.”
UM MAL SEM REMÉDIO
O chefe da PSP tem, ainda, uma ideia, no seu entender “utópica”, do que seria acabar com o flagelo. “Numa sociedade perfeita, acabaríamos com a droga na nascença, ou seja, não se produziria droga. Acabávamos com as plantações de coca, com as plantações de marijuana… Acabávamos com isso. Mas não é isso que vai acontecer, vai haver sempre países produtores de estupefacientes. Vai haver sempre países que vão produzir plantas ou substâncias que vêm para esse uso. Não podemos esquecer que as drogas sintéticas também estão aí em força.”
Além disso, Moreno Gonçalves reforça: “Há consumidores, ou seja, há procura. É preciso fazer um esforço generalizado de informar cada vez mais os jovens para os perigos da droga, para os estragos que faz na saúde, na vida profissional e pessoal, levando a que cada vez menos pessoas se iniciem no consumo.”
Neste contexto de oferta e procura que origina o tráfico, de maior ou menor gravidade, a Polícia atua todos os dias. Esta doença não tem cura, é ir aliviando os sintomas. A aposta da PSP é, pelo menos no entender do chefe, “minimizar os danos que tudo isto provoca”: “Acabar totalmente com o tráfico parece-me impossível.”