Já lá vai o tempo em que se batia à porta do vizinho para pedir açúcar. Não porque todos sigam...
Já lá vai o tempo em que se batia à porta do vizinho para pedir açúcar. Não porque todos sigam agora a última moda da dieta keto, nem por vivermos numa era de dispensas abundantes. O que escasseia, na verdade, são os laços entre a vizinhança. Se antes o convívio com a comunidade era regra, hoje é uma rara exceção. Este sinal discreto, que não se traduz em gráficos, não se mede em percentagem do PIB nem em orçamento de defesa, é tão decisivo como qualquer indicador económico. Diz muito sobre a saúde de uma sociedade. No entanto, esse detalhe essencial parece escapar a muitos dos comentadores que nos acompanham religiosamente todos os dias. Este índice, apesar de não ter um cálculo matemático que o suporte, mede-se pelo que une as pessoas, pela existência – ou ausência – de um chão de valores comuns. E, nos Estados Unidos, esse chão tem várias fissuras.
O debate político americano há muito deixou de ser um confronto de ideias. É discussão – na pior conotação que a palavra pode assumir – entre campos morais que parecem inconciliáveis. Qualquer cedência feita à outra parte é vista como traição, e o adversário já não é apenas adversário, é inimigo. Ao contrário do que acontecia antigamente – quando os debates presidenciais eram autênticas aulas de retórica, geopolítica e economia – democratas e republicanos já não partilham sequer uma visão mínima comum para o país. Hoje, é difícil chegar a bom porto, porque falta o ponto de partida essencial: valores comuns. Reagan, no seu discurso de despedida, alertou, com toda a razão, para a necessidade de se cultivar um “patriotismo informado”. O aviso mantém-se atual, sobretudo numa sociedade polarizada por bolhas de redes sociais.
Este sintoma não é exclusivo da América. A Europa não está imune, apenas disfarça melhor. Também por cá, a identidade coletiva está fragmentada. Isto porque nos esquecemos de um princípio incontornável: a coesão do tecido social não é garantida, mas também não é um luxo. É, sim, uma infraestrutura crítica. Quando se desfaz, sobra apenas um conjunto de edifícios e gente que nada tem em comum, para além do espaço geográfico que ocupa.
As casas continuam à mesma distância, os prédios mantêm-se lado a lado, mas já ninguém bate à porta do vizinho para pedir nada. O problema não é a falta de açúcar, mas a falta de espírito de comunidade. Porque já não reconhecemos no outro alguém com quem partilhamos algo mais do que apenas o código postal.