A velha pasteleira impositiva, feita com os sobrantes de uma cama de ferro que para ali andava desde o séc....
A velha pasteleira impositiva, feita com os sobrantes de uma cama de ferro que para ali andava desde o séc. XIX, pintada por tinta verde, errada para metal, era um diabo.
Subir era uma prova de esforço clínica, descer uma actividade desgovernada conduzida pelo guiador que, um dia, fora vaso e rosa retorcidos pelo martelo e forja. Hoje, anda-se de bicicleta eléctrica, que parece logo outra forma de exterminar prisioneiros nos Estados Unidos, além da conhecida cadeira. A imagem é tão clara quanto absurda: um objecto doméstico transformado em versão motorizada do destino. E assim começámos a chamar bicicleta ao que era lambreta — porque os GNR disseram-no, e bem: “(…) há sempre uma bicicleta / com motor é uma lambreta(…)”.
As cidades, entretanto, trocaram nomes por esperanças: temos ciclovias sem lambretovias; temos tinta para o planeta e betão para lembranças. Aqui, há atrasado, apareceram estes desportistas de motor fácil e moleirinha a pedir traumatismo, com umas trotinetas que, ‘quitadas’, batem os cem à hora. Concordo. Da observação à cólera há um só passo burocrático — e outro, mais curto, chamado medo e traumatismo. Porque não basta que algo seja veloz; é preciso existir um lugar que aceite essa velocidade sem sacrificar quem caminha devagar… ou pensa devagar.
Proponho, com a seriedade de quem brinca por causa, uns snipers somente com Pressão-de-Ar, para chumbar rabiosques de meninos e meninas, que ousam sequer pedalar em passeios, passadeiras, contracorrente, contra putos, velhos, desatentos — marimbando-se para as famosas vias exclusivas onde se derramaram milhões em tinta e betão… para salvar o planeta. (Não é uma proposta; é um sintoma.)
A pasteleira virou símbolo de resistência ao motor; o vaso e a rosa, guiador; a cama de ferro, mapa de cidade. Observação: quanto mais depressa esta imbecilidade de andar nos montes, vales e colinas — empilhados de carros e barrotes de cimento, para o pedalinho — desaparecer, mais feliz será a vida, de Norte a Sul. Mas antes, há que pensar se não seria interessante ter lei, educação e, vá, bom senso: três coisas que não se encontram em lojas de acessórios. Quem paga ciclovias imagina demente; quem monta lambretas, cobra fémures.
No final, a última volta: a pasteleira permanece, verde e errada, lembrando que as soluções recebem sempre o nome do problema. E se a resposta está entre um sussurro e um anúncio, então talvez o que nos falta — entre tinta e betão — seja a coragem de chamar as coisas pelos seus nomes e de não confundir velocidade com virtude. A cidade que se organiza contra si própria ainda nos pode ensinar algo: andar devagar também é política.