A ciência contemporânea descreve a atrofia cortical frontoparietal como um processo degenerativo. A sociedade, zelosa imitadora da biologia, parece ter...
A ciência contemporânea descreve a atrofia cortical frontoparietal como um processo degenerativo. A sociedade, zelosa imitadora da biologia, parece ter abraçado o diagnóstico com entusiasmo clínico: áreas críticas de raciocínio e empatia em colapso, sinapses sociais queimadas como carochinhas de papel em romaria de São João.
Diz-se que das cinzas brota sempre algo novo — o problema é quando o novo traz avental rendado e um sorriso de detergente. Eis as “TradWifes”, essas esposas vintage da pós-modernidade que acreditam ter reinventado o amor, mas só reciclaram o patriarcado em frasco de cristal. “A submissão, dizem, é liberdade com filtros.” Fazem milhões de filmes para o TikTok e Instagram a explicar porque a palavra de seu marido é uma ordem a que devem obedecer. Explicam como nunca discutir com o algoz – antes pelo contrário, subir ao quarto, botar lingerie da Temu e libertá-lo da sede.Existem, estão aí, são aos milhões. Santo deus levou as três Marias a tempo de não verem estas coisas.
As “tradwifes” são as heroínas do ferro de engomar emocional. Submetem-se voluntariamente — palavra nobre para um acto de rendição — ao marido que decide, orienta e protege. Elas administram lares como quem gere pequenas monarquias domésticas, com a obediência por decreto e a felicidade como propaganda de detergente “sem corantes nem ideologia”. O insólito é que o fazem em reels de 15 segundos, entre receitas de pão artesanal e citações bíblicas com filtro sépia.
A sociedade, fatigada de si, assiste com ternura. Talvez porque a servidão, quando filmada em 4K, parece menos servidão. Observa-se uma espécie de nostalgia higiénica: voltar aos anos 50, mas sem o cheiro a naftalina. Cada post é uma cápsula de tempo sem pó — onde o machismo brilha de tão polido.
Depois, claro, virão os “TradHusbands”, que se dizem líderes espirituais com barba aparada e discurso sobre “ordem natural”. Seguir-se-ão os “TradKids”, programados para acreditar que o forno é um sacramento e o pai, um oráculo. O algoritmo agradece: quanto mais submissão em alta definição, mais engajamento por pixel.
Mas não é por ironia que o movimento cresce — é por carência. A promessa de um papel fixo, de um manual de instruções moral, é sedutora num tempo em que ninguém sabe quem deve pôr a máquina da roupa. O caos assusta; a obediência, consola.
Talvez o cérebro colectivo esteja, de facto, em regressão — uma nostalgia neuronal, uma recusa infantil da incerteza. Porque, no fundo, a “tradwife” é o sonho húmido de um mundo exausto: ordem, perfume, e um jantar à mesa sem perguntas.
E todavia… há beleza nessa ilusão. Uma harmonia impossível que lembra o éter luminífero — substância outrora imaginada para explicar o inexplicável. Talvez o amor precise sempre de um pouco de ficção, mesmo que em papel de embrulho cor-de-rosa.
No fim, o diagnóstico mantém-se: a atrofia é real, mas é selectiva. O lobo frontal morre de tédio, enquanto o coração insiste em acreditar que o retrocesso é, às vezes, só uma forma de dançar para trás.