Telma Mendes, de 51 anos de idade, assistente de direção na Redes Energéticas Nacionais (REN), deixou de andar aos 16 anos. Uma doença degenerativa esteve na origem dos problemas motores com que aprendeu a viver, depois de uma infância e adolescência dedicadas ao desporto e às brincadeiras comuns a qualquer criança.
Hoje, desloca-se todos os dias da margem sul do Tejo para Lisboa de comboio. Mas o que para uma pessoa sem deficiência são apenas degraus ou passeios com pouco espaço, para Telma trata-se de uma autêntica gincana perante os mais diversos obstáculos.
Para chegar à estação da Fertagus, em Corroios, apanha boleia da mãe ou do marido. Entrar nestes comboios é fácil. “Aviso o segurança que vou naquele comboio. Eles ajudam-me a entrar para o comboio, avisam a estação onde vou sair, para estar sempre confirmada e não andar perdida.” A estação de saída tem elevador, bem como as estações do metropolitano de Lisboa, que utiliza com maior regularidade. “Se o elevador estiver a funcionar, não há problema nenhum: tenho tudo controlado. Se não funcionar, é que é uma chatice. Já me aconteceu ter de voltar para trás ou apanhar o comboio para outra estação com elevador.”
SEM TRABALHO POR FALTA DE ACESSOS
Ao chegar ao trabalho, na zona de Alvalade, os problemas passam por carros mal estacionados, a ocupar os passeios e a impedir a passagem, alguns passeios demasiado estreitos – onde não cabe a cadeira de rodas – ou degraus. Na empresa não tem dificuldades, tudo está adaptado. Deixa o propulsor – roda e guiador elétrico – no segurança e segue o seu caminho até ao gabinete. Há quem não tenha a mesma sorte: “Conheço muitas situações em que as pessoas não podem aceitar o trabalho porque não têm a acessibilidade.”
Mas nem sempre é tudo tão simples para Telma Mendes. Por exemplo, à hora do almoço, chega a deparar-se com dificuldades para aceder a certos estabelecimentos. “Em muitos casos, tenho de ficar na esplanada. Se estiver bom tempo, é agradável, o pior é nos outros dias.”
Ainda assim, em passeio com o 24 Horas pela zona da Avenida de Roma, vai dando alguns exemplos de boas práticas. “Neste bairro até há boas condições, quer para quem anda de cadeira de rodas, quer para as pessoas com carrinhos de bebé. É que eu não falo só por mim: onde não cabe uma cadeira de rodas também não cabe um carrinho de bebé.” Contudo, não é raro surgirem sinais de trânsito ou postes de eletricidade nos passeios a dificultar-lhe, ou mesmo impossibilitar-lhe, a passagem, obrigando-a a fazer trajetos maiores, contornando os obstáculos.
Nesta zona há alguns estabelecimentos com rampa e os passeios estão quase todos rebaixados junto às passadeiras. A calçada portuguesa “é muito bonita, é um património, mas, para nós, é um problema, porque escorrega imenso. Aliás, nas zonas onde há piso confortável todas as pessoas preferem andar nesse piso em vez da calçada.”
Telma atravessa várias passadeiras até chegar a meio da avenida. Junto à estação de comboios nota o piso rebaixado mas, desta feita, em calçada portuguesa. “Além da inclinação, como é em calçada, lá está, não é tão bom, escorrega.”
Algumas pastelarias têm rampas de acesso, bem como a farmácia onde Telma aproveita para entrar. Mas a maior parte das lojas tem um degrau – ou vários – e não está pensada para todos. “Lá está, na maior parte dos sítios não consigo entrar.” No final da volta aponta para um restaurante de comida rápida. “Esta loja levou obras e esqueceu-se de fazer uma rampa.”
SAÍDAS PROGRAMADAS AO MILÍMETRO
Telma adverte que, além dos problemas no quotidiano, sempre que quer fugir à rotina e ir, por exemplo, ao cinema, teatro ou simplesmente jantar fora, tem de planear tudo ao milímetro. “Tenho sempre de conhecer o sítio onde vou, se tenho acessibilidades se não tenho.” No fundo, Telma sente “uma perda de liberdade”. “Não peço mais do que poder fazer a minha vida com liberdade e dignidade. Muitas vezes, há pessoas que tentam ajudar-me para aceder aos locais, mas não quero. Depois dizem que os deficientes são arrogantes. Eu não sou arrogante: só quero poder fazer as mesmas coisas que todas as pessoas sem precisar de estar a contar com os outros, ter autonomia.”
Há também quem sinta dificuldades com a casa. “Como comprei a minha casa, adaptei algumas das partes dela, como a casa de banho e as portas, que eram mais estreitas. Para entrar em casa, só pela garagem. Não consigo entrar pela porta principal porque há um vão de escadas.”
Foi a pensar nas acessibilidades, sobretudo nos transportes públicos, que a Associação Salvador lançou no início do ano uma petição intitulada “Fiscalização pela Acessibilidade nos Transportes Públicos”. O objetivo é chegar às 7500 assinaturas e a petição já conta com 3500.
Em relação a todo o espaço público, a associação, liderada por Salvador Mendes de Almeida, que ficou tetraplégico aos 16 anos devido a um acidente de mota, também tem feito vários esforços. “A acessibilidade está em todo lado, não é só para as pessoas com deficiência. Não é só para as pessoas que andam de cadeira de rodas. Também é para as pessoas mais idosas, para as pessoas que empurram um carrinho de bebé. Obviamente, se caminharmos para cidades cada vez mais inclusivas, será para servir todas as pessoas e não só aquelas com deficiência”, alerta Joana Gorgueira, gestora de projeto de acessibilidades da Associação Salvador.
Joana acrescenta: ao 24 Horas: “A falta de acessibilidade e os obstáculos que se encontram no dia a dia também se notam no facto de não termos habitações acessíveis. Uma pessoa com deficiência, para procurar uma casa, tem muita dificuldade em encontrar habitações acessíveis. O espaço público, muitas vezes, não é pensado para todos.”
O DRAMA DOS DEGRAUS
Os prédios antigos não ajudam. E só as novas construções são obrigadas a ser acessíveis a todos. “Sabemos que temos edifícios bastante antigos. Temos de ter uma legislação que consiga dar resposta àquilo que é antigo e também àquilo que é construído de raiz. E neste momento as casas novas já têm acessibilidade”, continua a gestora de projeto de acessibilidades da Associação Salvador. “Portanto, o que existe é esta legislação, que possa dar resposta às necessidades das pessoas com deficiência, para que, daqui a 10 anos, consigamos ter um País mais acessível e que as pessoas consigam procurar uma casa que seja acessível a todos.”
E não basta conseguir entrar em casa. É preciso entender a habitação como um todo. “Muitas vezes, existem escadas na frente, mas a pessoa pode entrar pela garagem. E nós queremos que as pessoas com deficiência também possam entrar pela porta principal, como qualquer outra pessoa. Tem de haver uma igualdade de oportunidades para servir todos”, advoga Joana Gorgueira.
Arrendar uma casa antiga pode ser outro quebra-cabeças. “Os senhorios, na maior parte das vezes, não estão para gastar dinheiro a remodelar a casa e não arrendam a deficientes”, avança a diretora de projeto da Associação Salvador.
Os limites à liberdade nas horas de lazer também têm de ser alargados. “Não podemos conceber que uma pessoa com pouca mobilidade só consiga ir a alguns restaurantes.” E finaliza com o exemplo do próprio Salvador Mendes de Almeida. “Muitas vezes, ligamos para o restaurante, perguntamos se é acessível e dizem que sim. Chegamos lá e há um degrau à entrada. No caso do Salvador, cuja cadeira de rodas pesa 200 quilos, não vamos lá com uma ajudinha. Aliás, o objetivo é que as pessoas não precisem dessa ajudinha para entrar dentro de um estabelecimento, mas que consigam fazê-lo com a maior autonomia possível.”